quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Em busca de uma teoria das personalidades coerente com a vida

Vamos finalmente começar a escrever!
 

Parece-me que não há tema melhor para iniciar as reflexões sobre o Direito Civil do que o do homem e suas personalidades. Afinal, como discutir o Direito sem, primeiramente, conhecer o seu sujeito?


Muito já se discutiu ao longo da história sobre quem seriam os sujeitos do direito. Restringindo a discussão à contemporaneidade, aparentemente nos restaria o debate sobre o início da personalidade, considerando-se que somente a pessoa é sujeito de direito. E, não havendo mais dúvidas de que existem pessoas naturais e pessoas jurídicas, a discussão praticamente se restringiria à análise do nascituro, para concluir se ele é ou não pessoa.


O que eu gostaria de propor, no entanto, é um alargamento desse debate. Em vez de discutir quando se inicia a personalidade, proponho examinarmos o que se deve entender por pessoa.


Essa resposta, estou convicto, quem melhor nos fornece é Teixeira de Freitas. Nosso maior jurisconsulto, com sua lucidez habitual, derrubou as inúteis discussões travadas no Direito francês - e que, infelizmente, nós herdamos e cultivamos - e tratou de tecer uma teoria das personalidades que faz todo o sentido e confere coerência e clareza ao nosso sistema jurídico.


Freitas assevera que pessoa é todo ente capaz de adquirir direitos(1). Parece óbvio, não? Mas veja a sutileza da afirmação. Não se diz que toda pessoa é capaz de adquirir direitos, mas sim que pessoa é todo ente capaz de adquirir direitos. Há uma inversão na equação. A questão não é discutir quando se inicia a personalidade, e, por conseguinte, pode-se adquirir direitos, mas, antes, que entes podem ser considerados pessoa. Se, à primeira vista, a indagação soa tola, porquanto já temos as respostas de imediato - podem ser considerados pessoa tanto as pessoas naturais quanto as jurídicas -, veja-se que, em uma análise mais atenta, a indagação é fundamental. Observe que as respostas pessoas naturais e pessoas jurídicas são absurdas porque afirmam que podem ser pessoas pessoas. Na verdade, antes de chegar à ideia de pessoas naturais e jurídicas, faz sentido que nos questionemos sobre o que é pessoa. E essa indagação Freitas respondeu com a afirmativa com que abrimos este parágrafo: pessoa é todo ente capaz de adquirir direitos. A genialidade do grande jurisconsulto, que é o cerne do que queremos demonstrar, está na distinção entre o homem (tomado com ser humano) e a pessoa. Pessoa, em Freitas, remonta à origem etimológica da palavra: a máscara que se usava nos dramas clássicos. Com isso em mente, não é de se estranhar que Freitas enxergasse diversos papéis exercidos pelo homem na cena jurídica e que, por essa razão, constituíam pessoas diversas.
A humanidade, tomada como a essência do homem, pode ser enxergada, no palco da vida jurídica, de três formas distintas: I. de forma fracionada, focando em certos direitos do homem; II. de forma unitária, focando na existência física do homem; III. de forma plural, focando na interação entre interesses individuais. Cada uma das três formas, ressalte-se, ressoa por uma única máscara respectiva. Essa é extamente a ideia etimológica de pessoa, partindo de persona e de sua origem, ressonare, que significa "soar". "Fração, unidade, pluralidade, são as três gradações, que a análise psicológica descobre na contemplação da personalidade, contemplação verificada na vida real"(2). A humanidade, pois, pode se apresentar como uma abstração, focando em certos direitos do homem, o que consiste em uma pessoa; pode se apresentar como a entidade física humana, consubstanciada em outra pessoa; e pode se apresentar como uma pluralidade de interesses individuais, revelando uma terceira pessoa. A segunda pessoa, não há dúvida, é a que chamamos de pessoa natural ou física. A terceira, também logo se vê, é a que chamamos pessoa jurídica. E a primeira? Que pessoa é essa, que até hoje não conhecemos?


Na verdade, nós a conhecemos sim, pois ela existe independentemente de que nos demos conta disso. Como bem pontuou Freitas, "o direito é a vida"(3), e o que o jurista deve fazer, para examinar o tema da personalidade, é antes examinar a vida. Alguém nega a existência do nascituro, cujos direitos a lei põe a salvo desde a concepção? Alguém nega a existência da herança jacente? Da massa falida? Do condomínio? É interessante notar que o direito processual reconheceu a existência desses entes antes do direito material, concedendo-lhes capacidade judiciária. A postura do direito material, curiosíssima, foi taxá-los de entes despersonalizados. Veja-se, são entes cuja atuação na vida jurídica é inegável; entes que de um modo ou de outro, quer o direito material queira, quer não, adquirem direitos e os exercem, ainda  que por meio de representação. E, se a vida se revela assim, qual a dificuldade em chamar esses entes de pessoa?


A dificuldade está na ausência de uma noção bem definida de pessoa. Sem parar para pensar, concebemos a pessoa, inicialmente, como o homem, e admitimos a existência da pessoa jurídica sem nos darmos conta de que, ao fazê-lo, estamos derrubando nossa noção inicial de pessoa sem a substituirmos por outra, que explique a coexistência das duas espécies (natural e jurídica).


Freitas observou que "se tal é a realidade da vida humana, não compreendemos como essa distinção de pessoas possa ser dispensada em um Código Civil"(4).


Nosso objetivo neste curto espaço é chamar a atenção para a necessidade de se tratar da personalidade jurídica, hoje, à luz de uma bem definida noção de pessoa, e a de Freitas nos parece a melhor. Em vez de se enveredar por uma incansável discussão sobre em que momento se inicia a vida, para atribuir ou não personalidade ao nascituro, faz muito mais sentido reconhecer - isso mesmo, reconhecer - que independentemente de discussões de cunho médico e filosófico o nascituro exerce um papel na vida jurídica, ressoa por meio de uma máscara que o legislador ouviu, e por essa razão pôs a salvo os seus direitos. Ninguém nega a humanidade do nascituro, seja ele um homem vivo ou um homem em formação, ou um homem dependente de outro (a mãe). Essa discussão não é da alçada do Direito. O mesmo raciocínio se aplica aos "entes despersonalizados". Atendo-se ao significado primitivo de pessoa, a expressão sequer faz sentido. O ente age na vida jurídica, ressoa, atua em juízo, mas não é pessoa! Ora, esses entes não são homens, senão um aspecto da personalidade que foca em certos direitos do homem. Mas, se atuam no palco da vida jurídica, se usam sua máscara por meio da qual gritam aos nossos ouvidos "nós existimos", não é bem mais lógico e coerente reconhecê-los como pessoas, em vez de criar mil e uma teorias tortuosas para tentar explicar o fato que é inegável?


Em um artigo futuro pretendemos expandir essa discussão.


Neste espaço, por sua vez, o próximo passo será, examinada a teoria das personalidades, discutir a teoria das capacidades. Quem ainda estiver negando a personalidade dos entes despersonalizados em razão de sua atuação depender de representação certamente reconhecerá a lógica e a coerência do pensamento de Freitas ao analisar o tema da capacidade de fato.


(1) FREITAS, Augusto Teixeira de. Esboço de Código Civil. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Exteriores, 1952. P. 17.
(2) _______________________. Nova Apostila à Censura do Sr. Alberto de Moraes Carvalho ao Projeto do Código Civil Português. Rio de Janeiro: Laemmert, 1859. P. 104.
(3) Id. Ibid.  P. 104.
(4) Id. Ibid. P. 106.