POLÊMICAS ACERCA DO MANDATO (4)
(Texto elaborado em Belo Horizonte em 2006)
Quando há obrigação ex post facto de o mandante indenizar o prejuízo sofrido pelo mandatário na execução do mandato?
Apesar da relevância do tema da obrigação ex post facto do mandante de indenizar o mandatário pelos prejuízos sofridos no cumprimento do mandato, apenas WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO desfie o tema um pouco mais, de toda a bibliografia por nós consultada para realização deste trabalho.
Os autores lidos limitam-se a citar o dispositivo legal (art. 1.312 do Código Beviláqua e 678 do Código de 2002), ou, quando muito, dar um exemplo. Nem mesmo PONTES DE MIRANDA cuidou com mais cuidado da temática em seu longuíssimo Tratado, fazendo, todavia, referências a texto de PAULO e a juristas estrangeiros. Porém, não aludiu a polêmica de que trataremos infra. [A primeira edição do nosso Curso Didático de Direito Civil infelizmente também não aprofundou o tema; fazemos nossa mea culpa, e prometemos corrigir a falha na próxima edição.]
Mesmo que não tenha merecido dos grandes civilistas brasileiros maior atenção, entendemos que esta polêmica é a que mais carece de construção em direito pátrio, no que toca ao mandato, porque tem seriíssimas implicações práticas. Explique-se.
Nas palavras de WASHINGTON DE BARROS:
Preceitua ainda o art. 1.312 que “é igualmente obrigado o mandante a ressarcir ao mandatário as perdas que sofrer com a execução do mandato, sempre que não resultem de culpa sua, ou excesso de poderes”.
(...)
A propósito, há quem procure distinguir, concedendo referida indenização apenas nos casos em que o mandato seja a causa e não a ocasião dos prejuízos.
Assim, de acordo com esse ponto de vista, o mandatário não teria direito a ressarcimento nas hipóteses seguintes: a) — se ele, no desempenho do encargo, fosse assaltado e espoliado por ladrões; b) — se, na viagem empreendida para a execução do mandato, sofresse acidente, vindo a perder objetos próprios; c) — se, durante a mesma viagem, viesse a adoecer, sendo obrigado a despesas com seu tratamento.1
A questão que se insurge é: qual a extensão da obrigação do mandante de indenizar? A resposta para essa pergunta é de fundamental importância para que uma pessoa, no momento de contratar mandato, tenha consciência de que poderá vir a ter prejuízos com eventuais indenizações.
É que, embora pareça simples, a questão não o é tanto assim. Pensemos na realidade social do país, nos tempos atuais. O Palácio da Justiça de São Paulo localiza-se na Praça da Sé, sabidamente um dos pontos mais perigosos do centro da capital paulista, reconhecidamente uma das cidades mais violentas do Brasil. Imaginemos que uma pessoa economicamente desfavorecida necessite contratar mandatário para representá-lo em uma demanda que tramita na Justiça Estadual de Segunda Instância, em São Paulo. Encontra advogado com quem contrata mandato (provavelmente, também, prestação de serviços), e, inclusive, negocia um preço bastante baixo, pois não tem condições de pagar muito. O generoso jurista, embora consinta em receber um valor baixo de honorários, é pessoa abastada, e dirige um veículo bastante caro. Ocorre que, quando se encaminhava para o Tribunal de Justiça, e contornava a Praça da Sé, o mandatário é vítima de extorsão, e seu valioso automóvel lhe é tomado. Pergunta-se: deverá o mandante, pessoa simples e economicamente desfavorecida, arcar com o prejuízo sofrido por seu mandatário? Uma execução, em caso afirmativo, possivelmente deixaria o mandante somente com o bem de família, e mais nada.
É certo que uma interpretação mais literal do dispositivo legal levaria à resposta afirmativa. Não importa se o mandante for reduzido à quase miséria, afinal, dura lex sed lex.
Destrinchemos mais a análise. Nosso advogado, agora, dirige-se para o Palácio da Justiça de São Paulo em seu luxuoso carro às 11h, pois almoçará com a noiva no restaurante do TJ, ao meio-dia; posteriormente tem uma sustentação oral marcada para as 13h, em que representará um cliente; tem outra marcada para as 14h, em que atuará em causa própria; além dessas, mais duas, respectivamente às 14h e 30min e 15h, em que representará outros dois clientes; às 16h tem encontro para chá marcado com colegas no café do TJ; por fim, marcada para as 17h, tem a sustentação oral em que representará a pessoa economicamente desfavorecida que já mencionamos. Às 11h, então, sofre o crime e perde seu veículo. Quem deverá indenizá-lo, ou será que ele deve arcar com os prejuízos sozinho?
É possível alegar que ele só estava indo para o Palácio da Justiça no horário em que foi extorquido para almoçar com a noiva, afastando, assim, a responsabilidade dos mandantes, o que é corroborado pelo fato de que iria ao TJ, de qualquer jeito, para atuar em causa própria. Contudo, o advogado poderá alegar que só marcou o almoço com a noiva porque tinha de atuar em nome de cliente às 13h, e que pediu para a sustentação oral em que falará em seu próprio nome ser marcada para aquele dia pois teria de estar no Palácio de qualquer jeito. Contudo, pediu também para que a sustentação oral em que representará o economicamente desfavorecido fosse realizada naquela tarde devido ao chá que tomaria às 16h com os amigos. E agora, como resolver a peleja?
A maioria das soluções que se podem apresentar será subjetiva, e penderá para um e outro lado, dependendo de quem se queira defender. Na prática, é assim mesmo que deve ser. Mas o debate teórico deve almejar fugir do subjetivismo e oferecer soluções que sejam válidas para qualquer caso. Afinal, a lei, bem como a interpretação dela, não podem ser casuísticas. Não é fato que a lei é norma geral, imperativa, abstrata e inovadora?
Bem, só há uma solução que pode ser geral e abstrata, e é aquela da qual WASHINGTON DE BARROS lamentavelmente, a nosso ver, afastou: deve-se analisar se o mandato foi a causa ou a ocasião do prejuízo. Em todos os exemplos citados retro, foi apenas ocasião, não gerando, portanto, a responsabilidade do(s) mandante(s) de indenizar.
Cumpre analisar, destarte, o que seria um prejuízo causado pelo mandato. Pensemos, então, no caso de um mandatário, advogado, que, representando um cliente em audiência, após desacreditar uma testemunha da parte contrária, é vítima desta, que parte para cima dele, a socos e pontapés, e quebra o seu celular, rasga seu terno etc. Ora, nesse caso, o mandatário sofreu os prejuízos apenas por estar agindo pelo mandante. Não fosse o contrato de mandato, ele jamais estaria naquela audiência, e não teria motivos para desacreditar a testemunha. Se o fez, foi em nome e interesse do mandante. Vejamos o quanto este caso difere dos outros exemplos.
Se o advogado escolheu ir ao Palácio da Justiça em seu valioso veículo, ou se preferiu tomar o metrô, ou andar de seu escritório na Avenida Paulista até a Praça da Sé, fez tudo isso em nome próprio, por ocasião do mandato. Afinal, não há de se falar que é do interesse do mandante que o mandatário tome este ou aquele meio de transporte, ou escolha este ou aquele caminho para chegar aonde o mandante deveria ir. Por sua vez, no caso do descrédito da testemunha, a toda evidência que o mandatário só o faz em nome do mandante, e por causa do mandato.
Por ser a única que não conduz a tautologias, e prima pela generalidade e abstração, entendemos ser esta a melhor saída para a polêmica gerada pelo art. 678 do Código Civil.
REFERÊNCIA