quinta-feira, 5 de abril de 2012

Polêmicas acerca do mandato

POLÊMICAS ACERCA DO MANDATO (4)

(Texto elaborado em Belo Horizonte em 2006) 
 
Quando há obrigação ex post facto de o mandante indenizar o prejuízo sofrido pelo mandatário na execução do mandato?
 
Apesar da relevância do tema da obrigação ex post facto do mandante de indenizar o mandatário pelos prejuízos sofridos no cumprimento do mandato, apenas WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO desfie o tema um pouco mais, de toda a bibliografia por nós consultada para realização deste trabalho. 

Os autores lidos limitam-se a citar o dispositivo legal (art. 1.312 do Código Beviláqua e 678 do Código de 2002), ou, quando muito, dar um exemplo. Nem mesmo PONTES DE MIRANDA cuidou com mais cuidado da temática em seu longuíssimo Tratado, fazendo, todavia, referências a texto de PAULO e a juristas estrangeiros. Porém, não aludiu a polêmica de que trataremos infra. [A primeira edição do nosso Curso Didático de Direito Civil infelizmente também não aprofundou o tema; fazemos nossa mea culpa, e prometemos corrigir a falha na próxima edição.]

Mesmo que não tenha merecido dos grandes civilistas brasileiros maior atenção, entendemos que esta polêmica é a que mais carece de construção em direito pátrio, no que toca ao mandato, porque tem seriíssimas implicações práticas. Explique-se.

Nas palavras de WASHINGTON DE BARROS:

Preceitua ainda o art. 1.312 que “é igualmente obrigado o mandante a ressarcir ao mandatário as perdas que sofrer com a execução do mandato, sempre que não resultem de culpa sua, ou excesso de poderes”.
(...)
A propósito, há quem procure distinguir, concedendo referida indenização apenas nos casos em que o mandato seja a causa e não a ocasião dos prejuízos.
Assim, de acordo com esse ponto de vista, o mandatário não teria direito a ressarcimento nas hipóteses seguintes: a) — se ele, no desempenho do encargo, fosse assaltado e espoliado por ladrões; b) — se, na viagem empreendida para a execução do mandato, sofresse acidente, vindo a perder objetos próprios; c) — se, durante a mesma viagem, viesse a adoecer, sendo obrigado a despesas com seu tratamento.1


A questão que se insurge é: qual a extensão da obrigação do mandante de indenizar? A resposta para essa pergunta é de fundamental importância para que uma pessoa, no momento de contratar mandato, tenha consciência de que poderá vir a ter prejuízos com eventuais indenizações.

É que, embora pareça simples, a questão não o é tanto assim. Pensemos na realidade social do país, nos tempos atuais. O Palácio da Justiça de São Paulo localiza-se na Praça da Sé, sabidamente um dos pontos mais perigosos do centro da capital paulista, reconhecidamente uma das cidades mais violentas do Brasil. Imaginemos que uma pessoa economicamente desfavorecida necessite contratar mandatário para representá-lo em uma demanda que tramita na Justiça Estadual de Segunda Instância, em São Paulo. Encontra advogado com quem contrata mandato (provavelmente, também, prestação de serviços), e, inclusive, negocia um preço bastante baixo, pois não tem condições de pagar muito. O generoso jurista, embora consinta em receber um valor baixo de honorários, é pessoa abastada, e dirige um veículo bastante caro. Ocorre que, quando se encaminhava para o Tribunal de Justiça, e contornava a Praça da Sé, o mandatário é vítima de extorsão, e seu valioso automóvel lhe é tomado. Pergunta-se: deverá o mandante, pessoa simples e economicamente desfavorecida, arcar com o prejuízo sofrido por seu mandatário? Uma execução, em caso afirmativo, possivelmente deixaria o mandante somente com o bem de família, e mais nada.

É certo que uma interpretação mais literal do dispositivo legal levaria à resposta afirmativa. Não importa se o mandante for reduzido à quase miséria, afinal, dura lex sed lex.

Destrinchemos mais a análise. Nosso advogado, agora, dirige-se para o Palácio da Justiça de São Paulo em seu luxuoso carro às 11h, pois almoçará com a noiva no restaurante do TJ, ao meio-dia; posteriormente tem uma sustentação oral marcada para as 13h, em que representará um cliente; tem outra marcada para as 14h, em que atuará em causa própria; além dessas, mais duas, respectivamente às 14h e 30min e 15h, em que representará outros dois clientes; às 16h tem encontro para chá marcado com colegas no café do TJ; por fim, marcada para as 17h, tem a sustentação oral em que representará a pessoa economicamente desfavorecida que já mencionamos. Às 11h, então, sofre o crime e perde seu veículo. Quem deverá indenizá-lo, ou será que ele deve arcar com os prejuízos sozinho?

É possível alegar que ele só estava indo para o Palácio da Justiça no horário em que foi extorquido para almoçar com a noiva, afastando, assim, a responsabilidade dos mandantes, o que é corroborado pelo fato de que iria ao TJ, de qualquer jeito, para atuar em causa própria. Contudo, o advogado poderá alegar que só marcou o almoço com a noiva porque tinha de atuar em nome de cliente às 13h, e que pediu para a sustentação oral em que falará em seu próprio nome ser marcada para aquele dia pois teria de estar no Palácio de qualquer jeito. Contudo, pediu também para que a sustentação oral em que representará o economicamente desfavorecido fosse realizada naquela tarde devido ao chá que tomaria às 16h com os amigos. E agora, como resolver a peleja?

A maioria das soluções que se podem apresentar será subjetiva, e penderá para um e outro lado, dependendo de quem se queira defender. Na prática, é assim mesmo que deve ser. Mas o debate teórico deve almejar fugir do subjetivismo e oferecer soluções que sejam válidas para qualquer caso. Afinal, a lei, bem como a interpretação dela, não podem ser casuísticas. Não é fato que a lei é norma geral, imperativa, abstrata e inovadora?

Bem, só há uma solução que pode ser geral e abstrata, e é aquela da qual WASHINGTON DE BARROS lamentavelmente, a nosso ver, afastou: deve-se analisar se o mandato foi a causa ou a ocasião do prejuízo. Em todos os exemplos citados retro, foi apenas ocasião, não gerando, portanto, a responsabilidade do(s) mandante(s) de indenizar.

Cumpre analisar, destarte, o que seria um prejuízo causado pelo mandato. Pensemos, então, no caso de um mandatário, advogado, que, representando um cliente em audiência, após desacreditar uma testemunha da parte contrária, é vítima desta, que parte para cima dele, a socos e pontapés, e quebra o seu celular, rasga seu terno etc. Ora, nesse caso, o mandatário sofreu os prejuízos apenas por estar agindo pelo mandante. Não fosse o contrato de mandato, ele jamais estaria naquela audiência, e não teria motivos para desacreditar a testemunha. Se o fez, foi em nome e interesse do mandante. Vejamos o quanto este caso difere dos outros exemplos.

Se o advogado escolheu ir ao Palácio da Justiça em seu valioso veículo, ou se preferiu tomar o metrô, ou andar de seu escritório na Avenida Paulista até a Praça da Sé, fez tudo isso em nome próprio, por ocasião do mandato. Afinal, não há de se falar que é do interesse do mandante que o mandatário tome este ou aquele meio de transporte, ou escolha este ou aquele caminho para chegar aonde o mandante deveria ir. Por sua vez, no caso do descrédito da testemunha, a toda evidência que o mandatário só o faz em nome do mandante, e por causa do mandato.

Por ser a única que não conduz a tautologias, e prima pela generalidade e abstração, entendemos ser esta a melhor saída para a polêmica gerada pelo art. 678 do Código Civil.
REFERÊNCIA
1 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Obrigações, 2.ª parte. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. P. 268.

Polêmicas acerca do mandato

POLÊMICAS ACERCA DO MANDATO (3)

(Texto elaborado em Belo Horizonte em 2006)

Podem ser objeto de mandato apenas atos jurídicos ou quaisquer atos?

Outra polêmica em relação à noção do mandato diz respeito à natureza dos atos a cuja prática se obriga o mandatário. A definição trazida pelo Código de 1916 deixava margens para dúvidas, e a redação do Código de 2002 não resolveu o problema. Procedamos à análise, começando do trâmite do Projeto Beviláqua no Congresso.

O Projeto da Câmara dos Deputados, quando analisado no Senado por RUY BARBOSA, em seu famoso parecer de 1902, rezava o seguinte:

Art. 1.288. Effeitua-se o mandato, quando alguem confere a outrem poderes para que, em seu nome, pratique um ou mais actos ou administre um ou mais negocios.
A procuração é o instrumento do mandato.1


O elogiado senador sugeriu alteração da redação, a qual vigorou (com modificação, somente, da grafia de certas palavras) até a revogação do Código, em 2003. O art. 1.288 passou a dizer:

Art. 1.288. Opera-se o mandato, quando alguem recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar actos, ou administrar interesses.
A procuração é o instrumento do mandato.2


Não obstante a opinião de DE PLÁCIDO E SILVA, que exaltou o “espírito genial”3 de RUY BARBOSA, acreditamos que, além da modificação linguística, o senador poderia ter operado reforma do artigo para incluir a palavra “jurídicos” após “atos”. É que, desde aquela época, o entendimento era de que os atos que deveriam ser praticados pelo mandatário seriam atos jurídicos. Tal o entendimento do próprio BEVILÁQUA; veja-se o que anotou em seus comentários ao Código Civil:

Em regra, qualquer ato jurídico pode ser objeto do mandato.
(...)
O mandato é um contrato preparatório; habilita o mandatário a praticar certos atos jurídicos que não estão contidos nele.4


Contudo, dado o silêncio do Código, CAIO MÁRIO ensinou:

A segunda observação é relativa à natureza jurídica do ato para o qual o mandatário é investido de poderes. Embora a definição legal não o mencione, nossos e alheios civilistas explicam que somente atos jurídicos, patrimoniais ou não, podem ser praticados. Não faltam, porém, escritores que, considerando o elemento histórico, pois que no Direito Romano quaisquer atos, e não somente os atos jurídicos, se comportavam no exercício do mandato, não aceitam a restrição. Tal controvérsia, refletindo na legislação, divide-as em dois grupos: o dos que abrangem no mandato toda espécie de atos, e o dos que reclamam a restrição para os atos jurídicos.5

E conclui:

Pelo disposto no art. 1.288 do Código Civil brasileiro, que não alude a ato jurídico, como expressamente faz o francês, nosso direito alinha-se ao lado do B.G.B., do Código suíço, do polonês das Obrigações, admitindo também outros que podem nele estar compreendidos, e não somente os atos jurídicos.6


A conclusão à qual chega CAIO MÁRIO é a mesma à qual chegara ORLANDO GOMES, que diz:

A determinação de seu [do mandato] traço característico não é feita segura e uniformemente. (...) Recorre-se à qualidade dos atos a cuja prática se obriga o mandatário, havendo mandato, se for incumbido de realizar atos jurídicos, embora também possa encarregar-se da prática de atos materiais.7


PONTES DE MIRANDA tratou do assunto: “O mandato, no direito brasileiro, (...) não é limitado a negócios jurídicos: há mandato para atos jurídicos stricto sensu e para atos-fatos, e — no tocante a esses — não há representação.”8  Prossegue, apresentando direito comparado germânico:

No §662 do Código Civil alemão fala-se, apenas, de cuidar (ou gestionar) negócio entregue (ein übertragenes Geschäft zu besorgen), mas, a despeito da palavra “negócio”, ficou entendido que pode ser objeto de mandato qualquer ato de natureza fática, como altear muro, traçar ou debuxar plano. Quaisquer assuntos, foi dito, que podem ser objeto de contrato de serviço, ou de obra, podem ser objeto de contrato de mandato, de modo que somente a gratuidade e a onerosidade distinguiriam as categorias contratuais.9

Em sentido contrário, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO leciona que os atos a cuja prática se obriga o mandatário devem, necessariamente, ser atos jurídicos:

O mandato tem as seguintes e expressivas características:
(...)
f) — é contrato que só pode objetivar a realização de ato jurídico, não a prática de simples atos materiais ou fatos, como o empreendimento de uma viagem ou a prestação de um serviço.10


É possível concluir-se das palavras de SILVIO RODRIGUES que o entendimento supra é por ele comungado:

É verdade que a doutrina aponta, como diferença básica entre os dois institutos [mandato e prestação de serviços], o fato de a locação de serviços ter por objeto um fato material, enquanto o mandato tem por escopo a prática de um ato jurídico.11

E, por nossa vez, optamos por nos filiar ao entendimento dos consagrados civilistas da USP. É que, se entendermos que não somente atos jurídicos podem ser praticados pelo mandatário, enquanto mandatário, correríamos o risco de criar grande conflito entre o mandato e a prestação de serviços ou a empreitada12. Explique-se.

Por meio do contrato de mandato o mandante encarrega o mandatário de praticar certos atos, e este aceita a incumbência. Cumpre ressaltar: os atos a cuja prática se obriga o mandatário serão praticados por este, porém como se o fossem pelo mandante, devido à representação, essencial à ideia do mandato. Ora, pode-se anuir com a prática de atos jurídicos por uma pessoa, considerando-os, entretanto, praticados por outrem, que se fez representar naquela outra. O Direito acolhe tal idéia. A questão que emerge é: deveríamos dizer que atos materiais poderiam também ter-se como praticados por uma pessoa, quando na verdade o foram por outrem? Afirmamos que não.

À guisa de exemplo, pensemos no mais corriqueiro, ao qual aludiu o próprio BEVILÁQUA, como se verá infra. Contratamos um advogado para que nos represente em uma demanda. O advogado, além de atuar como nosso procurador, também se encarregará, naturalmente, de elaborar peças processuais para os autos da demanda. Ora, se o advogado contesta a inicial proposta contra nós, estará atuando como nosso mandatário. Porém, quando redige a contestação, é em seu nome que o faz. Não se poderá, por exemplo, citar um trecho do texto e dizer que é da nossa lavra.

O que ocorre é que, na verdade, dois contratos foram celebrados. Primeiramente, um contrato de mandato, para que o advogado atue por nós no processo; além deste, um contrato de prestação de serviços, pelo qual o advogado se obriga a disponibilizar seus serviços forenses ao fiel cumprimento do mandato. Tanto é assim que, se na contestação nosso advogado insultar o Juízo, será pessoalmente responsabilizado. PONTES DE MIRANDA chamou esse fato de negócios jurídicos subjacentes, justacentes e sobrejacentes 13.

Desfiemos mais o tema. É fato que poderíamos contratar certo advogado, ainda que esdrúxula a idéia 14, apenas para contestar a inicial. Celebraríamos mandato, com a natural outorga de poderes, via procuração. Alegar-se-ia: se o mandato é apenas para que o advogado conteste, onde estaria a prestação de serviços, ou, nesse caso, empreitada? Ou teriam os dois contratos o mesmo objeto, o que soaria estranho?

BEVILÁQUA resolve a controvérsia.

O mandato não se confunde com a locação de serviços, muito embora a ele ande, freqüentemente, ligado. Para distinguir as relações de direito, basta atentar: (...) no objeto do contrato, que, na locação de serviço é um determinado trabalho, material ou imaterial[15]; e, no mandato, é a autorização para fazer qualquer coisa.
O advogado é, ao mesmo tempo, locador de serviços imateriais, e mandatário. Do mandato vêm-lhe poderes para agir em nome do constituinte; a locação obriga-o a prestar serviços, segundo convencionou (...). O advogado, que, além de prestar serviços profissionais, representa o comitente, é locador de serviços e mandatário.16


O que se percebe é que, embora se repita aqui e acolá que o mandato é o contrato pelo qual alguém se obriga a praticar atos em nome de outrem, para o que recebe poderes de representação, é preciso atentar para o verdadeiro objeto do mandato, que é a autorização dada pelo mandante para que o mandatário aja em seu nome. Embora, aceitando o mandato, o mandatário se obrigue à prática dos atos, tal não é o objeto do contrato. Isso se confirma pelo fato de que, antes mesmo de se praticarem os atos a que se obrigou o mandatário, pode este exercer a renúncia, ou o mandante a revogação; e, não havendo prejuízo em qualquer dos casos, não haverá responsabilidade por perdas e danos. Certo é que essa regra, peculiar ao mandato, não é a regra geral em sede de contratos, vez que se exige, nos outros casos, que o acordo se desfaça via distrato, sob pena de diversas conseqüências que aqui não cumpre elencar. Mas no mandato, dado seu caráter de contrato baseado na fides, existe tal peculiaridade.

Concluindo, na esteia do mestre WASHINGTON DE BARROS, entendemos que a prática de atos jurídicos pode ser contratada via mandato; outros atos, não-jurídicos, que não tememos chamar de materiais, devem ser contratados em prestação de serviços ou empreitada, dependendo do caso.
Para concluir, nada melhor do que citar o grande M. I. CARVALHO DE MENDONÇA, cuja opinião, sempre atual, nós seguimos:

(...) podemos definir o mandato como "um contrato pelo qual alguém constitui a outrem seu representante, investindo-o de poderes para executar um ou mais de um ato jurídico".17


Sobre a representação, diz que “o que, nos tempos atuais, caracteriza essencialmente o mandato é a idéia de representação e de revogabilidade.”18

E sobre a natureza dos atos a cuja prática se obriga o mandatário:

No direito pátrio, o que caracteriza o mandato é que o mandatário deve preencher um ou mais atos jurídicos, em nome e como representante do mandante, por ter deste recebido poderes para tal representação, e para obrigá-lo em relação aos terceiros com quem contratar.
(...)
Mas aí [na locação — prestação — de serviços] os serviços são materiais e independentes da pessoa do locador. No mandato o principal serviço não é de ordem material; seu essência é a prática de atos jurídicos, não só por conta do mandante — como é na locação — mas representando sua pessoa, a própria individualidade, como se presente estivesse. 19

Houvessem os legisladores pátrios consultado o mestre mineiro da Faculdade Livre de Direito do Rio do Janeiro, polêmicas antigas acerca do contrato de mandato poderiam já ter sido resolvidas, com importantes conseqüências práticas.

REFERÊNCIAS E NOTAS

1 PROJECTO DE CÓDIGO CIVIL BRAZILEIRO. Trabalhos da Comissão Especial do Senado. Vol. I. Parecer do Senador Ruy Barbosa sobre a redacção do Projecto da Camara dos Deputados. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1902. P. 422.
2 PROJECTO DE CÓDIGO CIVIL BRAZILEIRO. Op. cit. P. 423.
3 DE PLÁCIDO E SILVA. Tratado do Mandato e Prática das Procurações. Vol. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1963. P. 22.
4 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado por Clovis Bevilaqua. Vol. V. 10. ed. atualizada por Achilles Bevilaqua. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1957. PP. 24-25.
5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. III. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1975. P. 351.
6 Id. ibid.
7 GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1977. P. 415.
8 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo XLIII. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1963. P. 5.
9 Id. ibid. PP. 6-7.
10 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Obrigações, 2.ª parte. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. P. 247.
11 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. P. 284.
12 É o que, segundo demonstra PONTES DE MIRANDA, foi feito em sede de direito germânico, que, seguindo a tradição romana, adotou a gratuidade como traço distintivo do mandato.
13 “O contrato de serviço, ou o de obra, pode estar subjacente ao de mandato, como pode estar subjacente ao de comissão, ao de corretagem, ou a outro contrato. Diga-se o mesmo quanto às relações jurídicas justajacentes e sobrejacentes. Tudo o que não é a outorga de poder de representação ou de obra em nome de outrem, é parte de outro contrato (e.g., se foi dada procuração ao jurisconsulto para representação em assembléia geral e, no contrato de mandato, se acrescentou que ele daria “parecer” para ser publicado, há dois contratos, o de mandato e o de obra).” (MIRANDA. Op. cit. P. 10.)
14 Dizemos esdrúxula porque dificilmente dar-se-iam apenas poderes para contestar, no mandato, sem autorizar a prática de qualquer outro ato jurídico forense.
15 A expressão atos materiais é por nós empregada, por questões práticas, como antônimo de atos jurídicos. BEVILÁQUA, contudo, distingue atos jurídicos de trabalhos (não deixam de ser atos) materiais ou imateriais. Tal parece originar-se de certo preconceito, vigente nos séculos passados, em dizer-se, por exemplo, que, ao elaborar um parecer, um advogado estaria praticando um ato material. Ora, certo é que o intelecto estará envolvido na prática do ato; não se afirme o contrário. Dir-se-ia então que é um ato intelectual (imaterial); material seria o ato de um pedreiro ao erguer uma parede. Para nós, todavia, de pouco vale a distinção; imaginar que o pedreiro não envolverá o intelecto na construção da parede seria uma ideia preconceituosa à qual não nos filiamos, e que desmerece, a nosso ver, a dignidade da pessoa humana.
16 BEVILÁQUA, Clóvis. Código. Cit. P. 25.
17 MENDONÇA, Manoel Ignacio Carvalho de. Contractos no Direito Civil Brasileiro. 2. ed. atualizada por Achilles Beviláqua. Tomo I. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1938. P. 228.
18 Id. ibid. P. 225.
19 Id. ibid. PP. 225-226.

Polêmicas acerca do mandato

POLÊMICAS ACERCA DO MANDATO (2)


(Texto elaborado em Belo Horizonte em 2006) 
 
Pode haver procuração sem mandato?

A segunda questão que se impõe é sobre a forma escrita da outorga de poderes, conhecida como procuração. Pode haver procuração sem mandato, sem prejuízo da idéia de representação deste tipo contratual?

O Código Civil de 2002 mantém, infelizmente, certa confusão, ao afirmar, no art. 653, parte final, que “a procuração é o instrumento do mandato”. A redação vem do Código de 1916. Aparecia no projeto de BEVILÁQUA e constou do Código que recebeu seu nome até a revogação deste.
Não obstante, ORLANDO GOMES esclarece que:

Esse ato jurídico unilateral [de outorga de poderes] carece, em nossa terminologia jurídica, de expressão que o designe inconfundivelmente. O termo procuração, que o definiria melhor, é empregado comumente para designar o instrumento do ato concessivo de poderes, mas tecnicamente é o vocábulo próprio.1


Buscando sentido técnico, sugerimos que a parte final do art. 653 do Código Civil de 2002 seja interpretada assim: “nos casos em que a lei exija o mandato por escrito, este se materializará na procuração”.

De se observar que, naturalmente, nos casos em que a lei não exigir a forma escrita para o mandato, não haverá necessidade procuração2; a outorga de poderes poderá se dar verbalmente. Reforça nosso entendimento o dispositivo do art. 655 do Código Civil, o qual estipula que “o mandato pode ser expresso ou tácito, verbal ou escrito”. O Código Beviláqua trazia, no art. 1.290, a mesma disposição, ipsis literis.

Ainda, na esteia do raciocínio de ORLANDO GOMES, se “para que o mandatário possa cumpri-la [a obrigação contratual], é preciso que o mandante lhe outorgue o poder de representação”, então, nos casos de mandato verbal, também a outorga de poderes será verbal, e integrante do mandato. Se assim não fosse, forçoso seria reconhecer que nesses casos o mandatário praticaria os atos sem que lhe houvessem sido outorgados os poderes de representação, o que seria uma conclusão tautológica.

Ora, podemos então concluir que pode haver mandato sem procuração, mas, justamente por não confundirmos esta com a outorga de poderes, não advogamos a tese do mandato sem representação.

Não obstante tudo o que já se afirmou, pode haver procuração sem mandato. Para nós, tal é o que ocorre quando a procuração não nasce do acordo de duas vontades — em que uma parte, o mandatário, obriga-se a praticar os atos determinados pela outra, o mandante, em nome deste. Afinal, contrato presume mais de uma vontade. O ato seria uma mera outorga de poderes — até aqui, ato jurídico unilateral — mas estaria dado o primeiro passo para a celebração de um contrato de mandato. Contudo, no momento em que o outorgado praticar qualquer ato em nome do outorgante, dentro dos poderes a ele conferidos pela outorga, aperfeiçoar-se-á o contrato, pois nesse instante a vontade do mandante encontra a vontade do mandatário (que até então não o era) e com ela se harmoniza. Nas palavras de BEVILÁQUA, “como em todos os contratos, a aceitação é necessária para a perfeição do mandato. E poderá ser expressa ou tácita esta aceitação.”3

Com isso pensamos ter resolvido as questões de se poderia haver outorga de poderes anterior ou posterior ao mandato. Concluímos, finalmente, que, no primeiro caso, trata-se de um primeiro passo para celebração de um contrato de mandato, o qual, entretanto, até aquele momento não está perfeito; no segundo caso, tratar-se-ia de contrato preliminar de mandato.

Em suma, é nosso entendimento que não pode haver mandato sem representação.

REFERÊNCIAS

1 GOMES, Orlando. Contratos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977. P. 414.
2 Para efeitos deste trabalho, compreendemos procuração como forma escrita da outorga de poderes.
3 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. ed. histórica. Rio de Janeiro: Rio, 1977. P. 272.

Polêmicas acerca do mandato

POLÊMICAS ACERCA DO MANDATO (1)


(Texto elaborado em Belo Horizonte em 2006) 
 
Pode haver mandato sem representação?    

Não somente BEVILÁQUA, como também WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, CAIO MÁRIO e CÉSAR FIUZA, entre outros renomados civilistas, concordam que a representação é ponto-chave da idéia de mandato.

BEVILÁQUA pontua:

O que caracteriza o mandato, o que o distingue de qualquer contrato, é a representação. Por ele, o mandatário representa, faz vezes ao mandante. Em nenhuma outra relação jurídica, oriunda de contrato, se dá essa substituição de pessoas, de modo que uma apareça como um prolongamento, uma projeção da outra.1 

Nas palavras de WASHINGTON DE BARROS, “o que caracteriza o mandato é a idéia de representação, suprema, básica, fundamental, não figurando em outros contratos” .2 O autor alerta, não obstante, para que “não se perca de vista que a mesma idéia existe em outras relações jurídicas [não contratuais]”.3

CAIO MÁRIO, por sua vez, explica que “no direito brasileiro, como no francês, no português etc. a representação é essencial (...)”.4

Já CÉSAR FIUZA assevera que “logo de início, cumpre esclarecer que mandato é espécie de representação”.5

Todavia, PONTES DE MIRANDA, seguido por ORLANDO GOMES, discorda desse ponto de vista.
Os respeitáveis mestres ensinam que o contrato de mandato aperfeiçoa-se com o acordo de vontades, no momento em que o mandante estipula os atos a serem praticados pelo mandatário, e este aceita a incumbência de praticá-los. A outorga de poderes de representação viria em ato separado, ainda que contemporâneo, e consistiria em negócio jurídico unilateral.

PONTES leciona que “(...) se é certo que o mandato é, quase sempre, acompanhado (seguido ou precedido) da procuração, não se há de ter esse acompanhamento como essencial. O mandato pode ser sem a outorga do poder de representação.” 6 Alega que tal é a teoria moderna, nestes termos:

A teoria moderna entronca-se em P. LABAND (...): mostrou ele que os deveres e as obrigações do mandatário nada têm com o poder de representação; a conferência de poder de representação é apenas espécie de outorga de poder, assente em manifestação unilateral de vontade do outorgante.7

Nas palavras de ORLANDO GOMES,

A atribuição desse poder é feita por ato jurídico unilateral, que não se vincula necessariamente ao mandato e, mais do que isso, tem existência independente da relação jurídica estabelecida entre quem o atribui e quem o recebe.8
O contrato tem a finalidade de criar essa obrigação e regular os interesses dos contratantes, formando a relação interna, mas para que o mandatário possa cumpri-la, é preciso que o mandante lhe outorgue o poder de representação.9

Para sustentar a desvinculação, argumenta-se que, por exemplo, uma pessoa pode procurar advogado, celebrar com este contrato de mandato para que venha a representá-la em caso de necessidade, porém não lhe outorgando quaisquer poderes, o que só seria feito diante da necessidade no caso concreto. Estaríamos diante de um mandato sem representação.

Não obstante a consistência do argumento, assim não nos parece ser. Acreditamos que tal seria um caso de contrato preliminar, no qual o que se faz, em verdade, é prometer a celebração de um contrato de mandato futuro.

Mesmo que se aprimore o exemplo, e proponha-se que uma pessoa pode procurar advogado, celebrar contrato de mandato com este para que venda um imóvel, optando, todavia, por lhe outorgar poderes somente em momento posterior, digamos, dali a dois dias, ainda assim insistimos tratar-se de contrato preliminar. É que, mesmo assentindo em realizar a venda, o advogado nada poderia fazer antes de receber a outorga de poderes. Ora, estaria mesmo impedido de cumprir sua obrigação contratual, fosse o contrato principal. Contudo, segundo afirmamos, trata-se de contrato preliminar, pelo qual o advogado obriga-se a celebrar contrato de mandato futuro, o que se dará no momento em que receber a outorga de poderes, aí sim se obrigando à prática do ato.

Cumpre ressaltar, entretanto, que tal contrato preliminar é revestido das mesmas peculiaridades que contornam o mandato. Este é contrato baseado na fidúcia, o qual quaisquer das partes podem extinguir, a qualquer tempo, observadas as devidas formalidades, por meio de revogação (mandante) ou renúncia (mandatário), salvo se a irrevocabilidade derivar da própria lei.10 A lógica jurídica, destarte, requer se considere que também o contrato preliminar de mandato é baseado na fidúcia, de maneira que o contrato principal pode não ser celebrado caso qualquer das partes perca a confiança que tem na outra, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos, se for o caso. 

REFERÊNCIAS E NOTAS

1 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. ed. histórica. Rio de Janeiro: Rio, 1977. P. 270.
2 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Obrigações, 2.ª parte. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. P. 245.
Id. ibid. P. 245.
4  PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. III. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1975. P. 350.
5  FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 8. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. P. 535.
6  MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo XLIII. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1963. P. 9.
7  MIRANDA. Op. Cit. P. 8.
8  GOMES, Orlando. Contratos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977. P. 414.
9  GOMES.Op. cit. P. 414.
10 Carece esclarecer que, não sendo irrevogável por força de lei, o mandato pode sê-lo por convenção. Nesse caso, entretanto, permanece revogável a qualquer tempo; contudo, caso se revogue, gerará responsabilidade por perdas e danos.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Em busca de uma teoria das personalidades coerente com a vida

Vamos finalmente começar a escrever!
 

Parece-me que não há tema melhor para iniciar as reflexões sobre o Direito Civil do que o do homem e suas personalidades. Afinal, como discutir o Direito sem, primeiramente, conhecer o seu sujeito?


Muito já se discutiu ao longo da história sobre quem seriam os sujeitos do direito. Restringindo a discussão à contemporaneidade, aparentemente nos restaria o debate sobre o início da personalidade, considerando-se que somente a pessoa é sujeito de direito. E, não havendo mais dúvidas de que existem pessoas naturais e pessoas jurídicas, a discussão praticamente se restringiria à análise do nascituro, para concluir se ele é ou não pessoa.


O que eu gostaria de propor, no entanto, é um alargamento desse debate. Em vez de discutir quando se inicia a personalidade, proponho examinarmos o que se deve entender por pessoa.


Essa resposta, estou convicto, quem melhor nos fornece é Teixeira de Freitas. Nosso maior jurisconsulto, com sua lucidez habitual, derrubou as inúteis discussões travadas no Direito francês - e que, infelizmente, nós herdamos e cultivamos - e tratou de tecer uma teoria das personalidades que faz todo o sentido e confere coerência e clareza ao nosso sistema jurídico.


Freitas assevera que pessoa é todo ente capaz de adquirir direitos(1). Parece óbvio, não? Mas veja a sutileza da afirmação. Não se diz que toda pessoa é capaz de adquirir direitos, mas sim que pessoa é todo ente capaz de adquirir direitos. Há uma inversão na equação. A questão não é discutir quando se inicia a personalidade, e, por conseguinte, pode-se adquirir direitos, mas, antes, que entes podem ser considerados pessoa. Se, à primeira vista, a indagação soa tola, porquanto já temos as respostas de imediato - podem ser considerados pessoa tanto as pessoas naturais quanto as jurídicas -, veja-se que, em uma análise mais atenta, a indagação é fundamental. Observe que as respostas pessoas naturais e pessoas jurídicas são absurdas porque afirmam que podem ser pessoas pessoas. Na verdade, antes de chegar à ideia de pessoas naturais e jurídicas, faz sentido que nos questionemos sobre o que é pessoa. E essa indagação Freitas respondeu com a afirmativa com que abrimos este parágrafo: pessoa é todo ente capaz de adquirir direitos. A genialidade do grande jurisconsulto, que é o cerne do que queremos demonstrar, está na distinção entre o homem (tomado com ser humano) e a pessoa. Pessoa, em Freitas, remonta à origem etimológica da palavra: a máscara que se usava nos dramas clássicos. Com isso em mente, não é de se estranhar que Freitas enxergasse diversos papéis exercidos pelo homem na cena jurídica e que, por essa razão, constituíam pessoas diversas.
A humanidade, tomada como a essência do homem, pode ser enxergada, no palco da vida jurídica, de três formas distintas: I. de forma fracionada, focando em certos direitos do homem; II. de forma unitária, focando na existência física do homem; III. de forma plural, focando na interação entre interesses individuais. Cada uma das três formas, ressalte-se, ressoa por uma única máscara respectiva. Essa é extamente a ideia etimológica de pessoa, partindo de persona e de sua origem, ressonare, que significa "soar". "Fração, unidade, pluralidade, são as três gradações, que a análise psicológica descobre na contemplação da personalidade, contemplação verificada na vida real"(2). A humanidade, pois, pode se apresentar como uma abstração, focando em certos direitos do homem, o que consiste em uma pessoa; pode se apresentar como a entidade física humana, consubstanciada em outra pessoa; e pode se apresentar como uma pluralidade de interesses individuais, revelando uma terceira pessoa. A segunda pessoa, não há dúvida, é a que chamamos de pessoa natural ou física. A terceira, também logo se vê, é a que chamamos pessoa jurídica. E a primeira? Que pessoa é essa, que até hoje não conhecemos?


Na verdade, nós a conhecemos sim, pois ela existe independentemente de que nos demos conta disso. Como bem pontuou Freitas, "o direito é a vida"(3), e o que o jurista deve fazer, para examinar o tema da personalidade, é antes examinar a vida. Alguém nega a existência do nascituro, cujos direitos a lei põe a salvo desde a concepção? Alguém nega a existência da herança jacente? Da massa falida? Do condomínio? É interessante notar que o direito processual reconheceu a existência desses entes antes do direito material, concedendo-lhes capacidade judiciária. A postura do direito material, curiosíssima, foi taxá-los de entes despersonalizados. Veja-se, são entes cuja atuação na vida jurídica é inegável; entes que de um modo ou de outro, quer o direito material queira, quer não, adquirem direitos e os exercem, ainda  que por meio de representação. E, se a vida se revela assim, qual a dificuldade em chamar esses entes de pessoa?


A dificuldade está na ausência de uma noção bem definida de pessoa. Sem parar para pensar, concebemos a pessoa, inicialmente, como o homem, e admitimos a existência da pessoa jurídica sem nos darmos conta de que, ao fazê-lo, estamos derrubando nossa noção inicial de pessoa sem a substituirmos por outra, que explique a coexistência das duas espécies (natural e jurídica).


Freitas observou que "se tal é a realidade da vida humana, não compreendemos como essa distinção de pessoas possa ser dispensada em um Código Civil"(4).


Nosso objetivo neste curto espaço é chamar a atenção para a necessidade de se tratar da personalidade jurídica, hoje, à luz de uma bem definida noção de pessoa, e a de Freitas nos parece a melhor. Em vez de se enveredar por uma incansável discussão sobre em que momento se inicia a vida, para atribuir ou não personalidade ao nascituro, faz muito mais sentido reconhecer - isso mesmo, reconhecer - que independentemente de discussões de cunho médico e filosófico o nascituro exerce um papel na vida jurídica, ressoa por meio de uma máscara que o legislador ouviu, e por essa razão pôs a salvo os seus direitos. Ninguém nega a humanidade do nascituro, seja ele um homem vivo ou um homem em formação, ou um homem dependente de outro (a mãe). Essa discussão não é da alçada do Direito. O mesmo raciocínio se aplica aos "entes despersonalizados". Atendo-se ao significado primitivo de pessoa, a expressão sequer faz sentido. O ente age na vida jurídica, ressoa, atua em juízo, mas não é pessoa! Ora, esses entes não são homens, senão um aspecto da personalidade que foca em certos direitos do homem. Mas, se atuam no palco da vida jurídica, se usam sua máscara por meio da qual gritam aos nossos ouvidos "nós existimos", não é bem mais lógico e coerente reconhecê-los como pessoas, em vez de criar mil e uma teorias tortuosas para tentar explicar o fato que é inegável?


Em um artigo futuro pretendemos expandir essa discussão.


Neste espaço, por sua vez, o próximo passo será, examinada a teoria das personalidades, discutir a teoria das capacidades. Quem ainda estiver negando a personalidade dos entes despersonalizados em razão de sua atuação depender de representação certamente reconhecerá a lógica e a coerência do pensamento de Freitas ao analisar o tema da capacidade de fato.


(1) FREITAS, Augusto Teixeira de. Esboço de Código Civil. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Exteriores, 1952. P. 17.
(2) _______________________. Nova Apostila à Censura do Sr. Alberto de Moraes Carvalho ao Projeto do Código Civil Português. Rio de Janeiro: Laemmert, 1859. P. 104.
(3) Id. Ibid.  P. 104.
(4) Id. Ibid. P. 106.
 


quinta-feira, 17 de março de 2011

Palavras de abertura

Parecem-me bastante apropriadas, para abrir este espaço de reflexões tanto do Direito Civil pátrio quanto de seu ensino, as palavras de José Clemente Pereira por ocasião da discussão do projeto de lei para criação de cursos jurídicos no Brasil, em 1826: "É preciso, senhores, dizia, que tenhamos em vista que um estudante não vai buscar a perfeição nas ciências, quando se matricula em um liceu. Daí ninguém sai erudito, nem completo, nos ramos que estudou... Aquele que simplificar ainda mais o método do ensino, fará certamente um grande serviço à humanidade. Desenganemo-nos por uma vez: NAS AULAS NÃO SE ADQUIREM CIÊNCIAS, MAS SOMENTE SE APRENDE A MARCHA, E O MÉTODO, PARA AS ALCANÇAR. Ora, sendo isto certo, que resta para se completar em quatro anos o estudo destas disiciplinas senão uma boa escolha de compêndios e um método sábio de ensinar? Nisto está tudo. Logo que os professores reconhecerem que não devem trabalhar tanto para si, como para os seus ouvintes; logo que cortarem doutrinas ociosas, e se dedicarem inteiramente às ideias essenciais, e aos pontos capitais da matéria que explicarem, em seis meses conseguirão os seus ouvintes mais luzes do que em dois ou três anos, se seguirem o péssimo sistema de longas dissertações sobre doutrinas alheias e inúteis, com o fim de ostentar erudição".
Excelente início de semestre letivo para todos nós.